domingo, 19 de julho de 2009

"Somo todos farinha do mesmo saco"


Como tínhamos dito aqui, começou há um mês um intercâmbio muito interessante entre Natal, onde moro hoje, e Lisboa. Desde sábado, os portugueses estão por aqui retribuindo a visita que a comitiva potiguar fez à "Tuga" no final de junho.

Dentro da programação, ontem aconteceu um show maravilhoso com Carminho, uma das novas vozes desse gênero musical tão triste e tão bonito que é o fado. Dizem que é preciso ter mais de 40 anos e ter sofrido uma grande decepção amorosa para cantar o fado, mas Carminho quebrou todas essas regras, pelo visto. Tem apenas 24 anos e no quesito voz é um assombro. Aqui você pode vê-la cantando a lindíssima “Marcha de Alfama”.

Completaram o show o magistral saxofonista Carlos Martins, cuja versão de “Maio Maduro Maio” arrancou lágrimas de um certo revolucionário amigo meu que estava na platéia e trabalhava pra RTP quando da libertação de Lisboa e Luanda e – como não dá mais para falar de Brasil e Portugal sem falar da África – colocou os pés do lado de cá pela primeira vez junto com a comitiva de tugas a caboverdiana Nancy Vieira, que mandou embora toda a chuva que caía em Natal há dias com seu vozeirão ao entar mornas, coladeiras e batuques, nomeadamente o lindíssimo “Vadú”, que encerrou o show.

Tudo isso vem à guiza de introdução para falar de Mário Ivo, um jornalista potiguar que conheci em janeiro e que me concedeu a honra de publicar, em dois sábados seguidos, um “pequeno dicionário” com cerca de 15 verbetes tentando explicar para quem está do lado de cá o que é Angola (tal qual aquele que causou tanta polêmica aqui no blog por causa do verbete "portugueses"). No final, Mário, que batizou essa sessão de “Adivinhe quem vem para o café-da-manhã”, amarrou as pontas de tudo e, brilhantemente resumiu Brasil, África e Portugal com um ditado popular que não deve ser só brasileiro: “somos tudo farinha do mesmo saco”.

Dono de um texto elegantíssimo, ele publicou dia desses a crônica abaixo, sobre Lisboa, e me autorizou a reproduzi-la no blog, para deleite de quem vive nessa ponte aérea e sentimental, saudosista e reflexiva, de amor e ódio para com as duas cidades (Luanda e Lisboa) e que, nos momentos mais difíceis, só precisam lembrar disso: “somos farinha do mesmo saco”. As fotos são todas deste datilógrafo, feitas quando da última "aterragem" por lá. Para acompanhar a leitura, que tal ouvir Amália Rodrigues cantando "Uma Casa Portuguesa" nesse videoclipe cafonérrimo e, por isso mesmo, maravilhoso?

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Embriaguez em Lisboa, Mário Ivo Cavalcanti

Nunca dei muita importância à Lisboa. Me pareceu mais interessante vista do alto, ou quando, pousados os pés na pista do aeroporto, manhã outonal de mil e novecentos e muitas décadas, ainda não tinha meus pés pousados realmente nela.

Depois, aquela profusão de praças, carros, ônibus – atulhando a visão. Diante de Madri, que eu só conheceria depois, Lisboa era uma cidade velha, caquética, mal-ajambrada – quase como uma daquelas favelas, fedendo a bolor e urina, esse tipo de lugar que a gente tem vergonha de assumir que tem nojo, mas evita a passagem com certo cinismo, mas não impunemente, porque a moral, porque a consciência, porque etc.

Mas, três meses sem ver o mar e foi Lisboa quem me reconduziu ao encanto que é ver o mar e saber que existe um momento na vida em que não ver o mar é um desencanto a mais na solidão. Inda mais quando se assiste ao mar engolfando rio e virando oceano e horizonte infinito. Inda mais quando é o Tejo, o rio particular de todos nós, aldeões, a ser engolido por um Atlântico ainda remanso, antes de virar, tormenta, onda, vagalhão. Um rio inteiro, grande por magnífico, magnífico por secular. Secular porque sim.

Do que ainda me lembro, e tão pouco me lembro, Lisboa a partir de um automóvel não é a mesma de quando percorrida – melhor dizendo, tateada – a pé. Passo miúdo, passo apressado, passo junto ou desconjuntado, a pé.

Talvez eu diga isso, agora, quase outra encarnação da memória, por um atalho brusco e sem sentido na direção do ensaio sobre a cegueira do senhor Saramago, o português moderno por excelência e distinção. Não pelo livro em si, que de Lisboa tem pouco, mas pela importância do tato diante da visão, da definição exata das pontas dos dedos frente ao esboço do olhar.

Todos modos, acredito piamente que sabe-se mais de Lisboa no interior do elevador de Santa Justa do que olhando o Tejo e suas pontes, que na verdade são apenas duas e que na verdade é apenas uma e haverá quem diga que se parece com a Ponte de Todos e não o contrário. (Mas que, verdade-verdadeira, são muitas pontes, milhares delas, centenas delas, dezenas dela, uma única, enfim, porque muitos são os pontos de onde guardá-la, mas sempre unitário é o olhar.)

Em Lisboa (e também creio piamente, que hoje acordei quase devoto), ou você passa a mão pela rachadura das paredes, ou você sente o entalhe do tempo no madeirame das casas, ou você fere os dedos no ferro trabalhado do Santa Justa – ou então, você não sente nada e se ilude com uma indigestão de paisagens abertas.

Porque, dizem, a visita primordial é ao Mosteiro dos Jerônimos, e à Torre de Belém, mas aquilo sempre me pareceu uma espécie de Disneylândia Gótica, um épico arquitetônico, enfim, grandiloqüente por demais, sonoro por demais, ruidoso por demais, fake por demais.

Houve um tempo, também, em que o que mais me incomodava em Lisboa era sua língua. O rumor da sua língua. A entonação da sua língua. A língua de suas ruas, carregadas de insinuações verdes, de prosódias amarelas. Com esse arremedo de identidade comum, de berço comum, de lugar comum, de decadência comum – reino e colônia amalgamados numa tristeza, saudade sem fim. Porque quando se é jovem queremos, desejamos, almejamos, exigimos, enfim, a incompreensão.

Quando eu desci em Lisboa, naquela manhã de outubro-outono, um dos passageiros estava bêbado. Da mesma embriaguez do cônsul britânico em Cuernavaca no Dia dos Mortos, como se saído direto das páginas de “À sombra do vulcão” para um tête-à-tête com Almada-Negreiros – em frente a A Brasileira. Era um homem realmente bonito e já dava seus primeiros passos para o dia em que chegaria à velhice onde, talvez, perderia também parte do fascínio dos habituados a pôr à mesa a própria beleza. Por enquanto, estava vestido elegantemente, ainda mais com a gravata elegantemente desconjuntada como se desejosa em combinar com a embriaguez do seu proprietário. Tinha, explicitamente, a elegância dos que se destacam naturalmente do rebanho, dos que optam alçar a cabeça no prumo das nuvens e não enterrar o focinho na providência segura do pasto. Desconfio que misturou pastilhas medicinais com álcool, tão irresistível era sua bebedeira. Desconfio que tenha passado a mão na bunda de uma aeromoça, a mais bonita, a mais madura, a mais magra e alta. Desconfio que ela gostou, mas é das aeromoças a cobrança de respeito pelos passageiros, pois. Por isso o rosto amuado da menina – aliás, toda a equipe estava visivelmente irritada com o sujeito. Que, ainda no ônibus que nos levaria da pista para a alfândega, pegou o chapéu de uma senhora, colocou na própria cabeça, continuou rindo, indiferente à raiva que provocava no mundo, sem se preocupar se seria preso, algemado, interrogado, sem se importar, inclusive, se havia desembarcado em Lisboa ou alhures. Porque, como em qualquer cidade, desembarcar em Lisboa pode ser desembarcar em lugar algum, voltar ao ponto de partida, de onde nunca se parte realmente.

3 comentários:

Gisele disse...

Oi, X!

Vc mora em Natal??? Eu morei em Luanda 1 ano e meio, voltei em Dezembro para Natal e até hj não me curei de saudades de Angola.

X disse...

Oi, Gisele, moro sim, com todo gosto. Vamos nos falar, então, para matarmos as saudades aos poucos. Meu email: praujo@gmail.com

Anônimo disse...

Em frente a A Brasileira, quem esta é Fernando Pessoa(=..não pude deixar de dizer.